Águas do sofrimento
“- Para que se desesperar assim?
Porque sou abominável, esta vida me aniquilou, tudo o que havia em mim, tudo está morto. Eu já sofro não com orgulho, mas com baixeza, já não há dignidade no infortúnio. Humilham-me a todo minuto, eu tudo suporto, eu mesmo procuro a humilhação. Essa lama me domina."
(Tolstói, "Contos", "Das Memórias do Cáucaso", O rebaixado).
Vivi numa cidade que recebia do céu as mesmas águas de março, ao anunciar o fim do verão.
Enchente a provocar tristeza, perda de bens, feridas e mortes, quase nenhuma. A terra, como ocorria desde os primórdios, absorvia as águas. E se tornava tenra e fértil. E elas tinham caminhos para escoar.
A "Pauliceia Desvairada", contudo, haveria de ser uma grande metrópole vistosa, mais uma a embelezar o mundo no pós-guerra. De uma matéria prima denominada cimento, armado e multicolorido. Por onde vazar ou ser absorvida a água? Coisa secundária, sem nenhuma importância. O que atraía era o crescimento - pensamento que até hoje embala os sonhos de nossos políticos. A qualquer preço.
Previsão de males futuros é literatura romântica. Preservar a natureza, modificando-a sem agressões, em compasso com a vida, problema dos ecobobos. Há dinheiro a ganhar. Algum outro fato importa?
A realidade de hoje, tão diversa daquela dos primórdios da grande metrópole, é dantesca, demoníaca. O sofrimento penetra nas entranhas, as lágrimas são tantas que podem ser confundidas com as enxurradas podres. O brasileiro e paulistano, de tanta força de trabalho e luta pela sobrevivência, não mereceriam jamais a sordidez das desgraças que os agarram e da qual não conseguem sair.
Sair de casa, é melhor perder o barracão do que a vida. O governador lança a frase melodramática, mas sabe que seria possível não haver enchentes que pusessem barracões a baixo; inundações que infeccionam crianças e as matam. Sabe que essa opção não deveria estar na pauta da administração pública. "Flores brancas" ou "flores pretas", indagaria o poeta Hoffmann...
É linda a música popular brasileira. Mas falar de barracão de zinco, sem telhado, no morro, é horror real, que supera o imaginário e ficcional de Poe. A opção parece óbvia. A vida. Mas, que vida, sem barraco, sem teto, sem um mísero varal para secar as roupas. Aliás, que roupas? Governador, podemos compreender sua frase, mas não compreendemos a sua, as outras, todas as políticas, que nada preveem. Morros verticalmente apertando não só barracões, mas modestas construções de alvenaria sem pintura, poderiam ser transformados em taludes a 45 graus e gramados. O lamaçal nas chuvas seria contido e a estética urbana agradeceria. Nada insuportável pelas finanças públicas, se cessada a roubalheira.
A vida ou sua opulenta residência nos jardins? Nada contra ela, contra a riqueza, se lícita e justa, mas quem é capaz de pensar como se habitasse o corpo dos desgraçados?
Amadeu Garrido de Paula, é Advogado, sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados - bruna@deleon.com.br
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