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Certo dia, o diretor de uma escolinha ganhou baldes de tinta lilás, chamou a professora e disse: “vamos repintar a escola e quero que façamos uma consulta sobre a cor que as crianças preferem. Não sei como você vai fazer, mas quero um resultado com mais de 80% das crianças escolhendo a cor lilás”. No dia seguinte, a professora colocou na mesa do diretor o resultado da consulta com 100% de preferência para o lilás. O diretor ficou feliz e anunciou em solenidade a pintura com a cor preferida das crianças.

A professora – que prezava pelo próprio salário – fez uma engenharia simples: realizou a consulta com cédulas nas quais as crianças deveriam escolher entre “lilás” ou “outra cor”. Além disso, jogou fora todas as cédulas em que a opção escolhida era “outra cor”.

Em outro país, um médico levantou-se pela manhã, fez a higiene pessoal e sua primeira refeição, abençoou seus diletos filhos, beijou a esposa amada e foi para o trabalho. Na rotina de seu cotidiano, selecionou 29 crianças saudáveis que deveriam ser inoculadas com o vírus da sífilis para que ele e sua equipe pudessem estudar esse terrível mal. Assim, poderia desenvolver a ciência, conhecer a doença e salvar muitas vidas no futuro. Os 29 infantes começam a ser observados, cercados de cuidados e controles, para que nada interferisse na valiosa experiência.

O médico retorna ao lar no fim da tarde e sua pequena Rose vem ao seu encontro. Ele aconchega a filha no colo e pensa espontaneamente que seu valioso trabalho poderá um dia salvar sua filha, ou outras Roses, muitas, com o mesmo sorriso inocente. Seu pensamento se perturba um pouco, só um pouco, ao pensar que alguém poderia fazer com sua Rose o que ele está fazendo com os 29 infantes. Não, isso não seria possível, ele não permitiria. Aqueles 29 nem sabem o que está ocorrendo, não podem opinar, não podem decidir, não têm quem os protejam, são filhos de pessoas que não têm poder na sociedade, são crianças que estão lá para serem testadas. Além do mais, não era ele – como médico – que decidia. Ele apenas acatava o que já estava decidido. Ainda, as ordens eram claras para todos sobre quem poderia ser usado para os testes e quem não. Não cabia ao médico escolher, opinar, mas seguir as ordens; não cabia pensar, mas obedecer; não cabia sentir, nem avaliar, mas seguir o que já estava definido.

No Brasil de hoje, há professoras e médicos como os das histórias acima que, motivados pelo ambiente criado pela pandemia, têm se revelado e ocupado as manchetes de nossos jornais. Isso é positivo: a sociedade está denunciando, ou seja, está rejeitando tais práticas. Espero que sim.

Seria preciso argumentar, explicar, enunciar sistematicamente o que há de errado nas práticas cometidas pela professora e pelo médico das duas histórias? Se isso for necessário, temo que seja inútil, pois qualquer ser humano, isento de conflitos de interesse, percebe claramente a malícia, o vício e o perigo dessas práticas. Destaco, todavia, dois elementos: o primeiro é da ciência, relacionado ao método. O segundo é ético, relacionado aos pressupostos teóricos.

O método científico só será aceito como tal se buscar a verificação da realidade, seja o resultado favorável ou não a quem investiga. Quando o resultado da pesquisa foi definido antecipadamente é porque a ciência foi jogada no lixo e a pesquisa se torna jogo de cena para mascarar interesses. Quando tais manobras são usadas para “escolher” a cor de uma escola, o dano é pequeno e serve apenas para lustrar o ego de um diretor autoritário. Mas e se essa mesma manobra estiver sendo usada para a definição de políticas públicas? E se foi usada para “testar” o medicamento que eu uso rotineiramente? São tantas as perguntas que pululam em nossa mente, sendo que tal prática causa um mal terrível: passa-se a desconfiar da ciência. Se os órgãos de controle não denunciarem tais manobras e condenarem seus atores, a sociedade ficará muito confusa. A regra se inverte e o bem comum fica relegado a nada, a ciência vira serva submissa dos poderosos.

A questão ética talvez seja mais fácil de ser percebida: todo argumento que prejudica algumas pessoas para premiar um número maior, esbarra no questionamento pragmático “quem escolhe os que serão prejudicados?”. Nessa hora, desvela-se um conjunto complexo de esquemas mentais que estão escondidos nas práticas sociais.

Por incrível que pareça, são construídos pressupostos teóricos que respondem positivamente às seguintes perguntas: algumas pessoas têm mais valor que outras? Algumas categorias sociais podem ser prejudicadas para que outras se beneficiem? Uma pessoa pode ser usada como meio para alcançar interesses alheios? Há, na sociedade, grupos que se sentem confortáveis ao responder positivamente a essas indagações, mas precisam, coerentemente, exibir sua marca: a humanidade não existe, o bem comum não importa, somos apenas lobos lutando contra lobos. Esses grupos se esquecem de que o poder muda de mãos e, se a lógica também não mudar, eles podem ser as vítimas no futuro.

Assim estamos no Brasil, contando histórias para falar do óbvio, que qualquer um, minimamente humano, percebe sem precisar de argumentos.

Mário Antonio Sanches é pós-doutor em Bioética, doutor em Teologia, mestre em Antropologia Social, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e coordenador do Programa de Pós-graduação em Bioética da PUCPR. aline@v3com.com.br

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