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Ao eclodir, para o nosso conhecimento, pois antes se embrenhava em brumas enevoadas, como queriam os donos do mundo de sempre, a tragédia do coronavírus, quem costuma tirar conclusões de premissas indiscutíveis bem sabia o que viria a estremecer nosso Brasil: verificado o que se constatava em países desenvolvidos, numa ainda aldeia, posto que envernizada pela tecnologia, principalmente das comunicações, com saneamento básico circunscrito a 50% das vias e moradias e sistema habitacional em rústicos barracos superpostos, com escórias a céu aberto, o pior dos piores seria inevitável.

Não é nenhuma novidade, portanto, que tenhamos alcançado a posição de o núcleo duro de disseminação da pandemia. As causas produzem seus efeitos estritamente correspondentes, não há magicas que contornem a lei da vida. E questões sociais crônicas, em toda a história do homem, jamais foram superadas a um sopro mágico.

Nas mesmas deploráveis condições sanitárias, a humanidade sofreu a peste negra, a gripe espanhola, e a resistência "científica" a que recorreram; decorrido o tempo da evolução maravilhosa, inacreditavelmente ainda é a mesma: o isolamento social. Realmente, nossos conhecimentos no campo da medicina não têm outra coisa senão essa velharia, porém necessária e única, a recomendar.

E tudo foi agravado - isso não seria necessariamente previsto - por litígio de repercussões profundamente negativas, no plano federativo, entre a União, comandada por um ciclotímico e notório tresloucado, e os governadores estaduais. O primeiro constatou que seu governo imergiu num córrego torpe e implacável. A crise geraria muitas mortes e quase que total decadência econômica, que empanaria seu pensamento diário de reeleição. Por isso, era preciso irrealizável: a descoberta e aplicação de um medicamento extraordinariamente salvador ou de uma emergencial vacina: nenhuma das hipóteses factível, de modo que avultou a contradição com os condutores dos estados-membros, que optaram por não se desviar das experiências dos outros povos e da Organização Mundial da Saúde, o medieval isolamento, porém único método. Evidentemente, estes tinham os pés no chão, enquanto o primeiro, pervagando nas nuvens das ilusões, foi se tornando cada vez mais apoplético e sem rumo, travestindo-se - única alternativa - de herói, que agora se vale espetacularmente de um Rocinante no coração de Brasília.

A defesa de Jair Bolsonaro, o mais tosco presidente das repúblicas brasileiras, somente poderia ser essa - partir para o ataque. Consequentemente, o mal não é o Covid-29 e a insuficiência da ciência mundial para combater os inimigos comuns da humanidade, que aportaram neste planeta antes mesmo destes "homines sapientes", portanto, os invasores. É o método de isolamento social adotado pelos entes federativos, um Congresso que não o deixa agir e um Supremo Tribunal Federal que, ao ver uma expressão normativa ofensiva aos direitos e garantias consagradas no diploma jurídico fundamental, somente pode refixar os trilhos de um Estado Democrático de Direito, é dizer, constitucionalizado, como haveria de ser no século XXI.

Essas ofensivas, todas sob as roupagens hilárias de um rei alucinado, visam a instituição de um governo autoritário e tirânico - governo de um só ou dele e da família. Exerce-se-o no Brasil de hoje rigorosamente em conformidade com o conceito aristotélico. Naturalmente, as oscilações quase que cotidianas em torno do posicionamento sobre um mesmo tema faz parte da tirania irresponsável, vais e vens que talvez fossem evitados se se tratasse de uma família razoavelmente culta, ainda que sem ser legítima.

Os vilipêndios ao Congresso Nacional demonstram absoluto desconhecimento das atribuições de uma casa de leis: os projetos podem ser apresentados por quaisquer das pessoas contempladas na Constituição da República; mas segue-se a discussão pelos parlamentos, seja discricionária, em que prevalece à vontade segundo conveniência e oportunidade, seja vinculada à Constituição, para o que servem as Comissões de Constituição e Justiça e em último pronunciamento o Plenário. Os Parlamentos têm ampla liberdade para acolher ou rejeitar um projeto; se o rejeita, tendo promanado do Executivo, não o desafia, não embaraça o governo, porque este, reitere-se, não é tirânico, mas compartilhado. Esse princípio é diariamente ignorado e pisoteado por Bolsonaro.

As ofensivas à Suprema Corte de Justiça Brasileira - o Supremo Tribunal Federal – STF são ainda mais disparatadas e ignorantes. Juntamente com boa parte da população - desobrigada da leitura da ciência do direito - levam à lona a tradição cultural mais expressiva de nossa história - o conhecimento jurídico, que remontava ao direito romano, fonte das ideias normativas - e se ombreava ao direito francês, italiano, alemão e de outros países do velho mundo. Já fomos conhecidos como o "país dos bacharéis".

Sem conhecimento, a expressão do homem é nervosa e assertiva. Se não se pronuncia em brados altos ou desmontadores da honra do adversário, pode demonstrar toda sua fraqueza. Por essa razão, em quase todos os dias brota o matagal das heresias jurídicas, muito evidentes para os conhecedores, mas sustentadas a ferro e fogo por bolsonaristas. Estes agem como se o direito emanasse de suas próprias elucubrações sobre o comportamento humano, ainda que tristemente irrefletidas e pobres. Observem-se acontecimentos recentes: O Ministro Celso de Mello, decano da casa, errou ao dar vista de uma postulação ao Procurador-Geral da República, e a tal ponto que se tornou o inimigo número um da República e da Democracia - a querida por Bolsonaro e filhos. O mesmo ocorreu com o Ministro Alexandre de Moraes, ao determinar diligências investigatórias num inquérito policial sobre seu comando. Mas muito pior: aos ministros do Supremo Tribunal Federal, a quem devemos a incursão elucidativa nos meandros mais profundos da ciência, posto que não há um único - ao contrário do que gritam nas ruas seus detratores - que não domine as mais complexas doutrinas e a jurisprudência, produzindo hermenêutica constitucional isenta e admirada por todo o orbe - sujeitos até a ameaças de morte pela súcia ignara, estimulada pelo chefe político.

Contudo, a reação não passará. Não voltaremos a uma ditadura, até porque Bolsonaro e seus eventuais asseclas não dominam a intelectualidade necessária para conduzir uma nação, sem a qual um golpe é simplesmente fugaz. E também porque todos os partidos lúcidos, sobrepostos a ideologias e partidarismos, certamente não permitirão um retrocesso de nossas sensíveis conquistas democráticas e das liberdades públicas.

Amadeu Garrido de Paula, poeta e ensaista literário, é advogado, atuando há mais de 40 anos em defesa de causas relacionadas à Justiça do Trabalho e ao Direito Constitucional, Empresarial e Sindical. Fundador do Escritório Garrido de Paula Advocacia e autor dos livros: “Universo Invisível” e “Poesia & Prosa sob a Tempestade”. Ambos à venda na Livraria Cultura. (bruna@deleon.com.br)

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