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Músico publica textos autobiográficos pela Grafatório Edições e faz show na cidade

Uma Londrina estranha e caipira, cenário para uma sensibilidade infantil quase delirante. A primeira professora de piano e uma apresentação surreal tocando caixa de guerra com a fanfarra do Colégio Marista. A mudança para uma assustadora São Paulo, um show histórico com Alice Cooper, um encontro marcado com Tom Jobim. E os bastidores da criação de uma obra prima: Clara Crocodilo.

Essas são apenas algumas das memórias registradas em No Fim da Infância, livro de estreia do músico londrinense Arrigo Barnabé que a Grafatório Edições, também de Londrina, lança no dia 27 de junho. O lançamento será às 19h30 na Vila Cultural Grafatório (Av. Paul Harris, 1575), e vai contar com a presença do próprio Arrigo, que irá participar de uma sessão de autógrafos e de um bate-papo com o público.

O conjunto de nove textos autobiográficos revela ao leitor passagens curiosas e fundamentais da vida desse criador genial, que nos anos 1980 revolucionou a música nacional ao trazer elementos da música erudita contemporânea para o território da MPB. Publicados originalmente nas revistas piauí e Calibán, os textos também são uma porta de entrada para se compreender o movimento musical conhecido como Vanguarda Paulistana, que tem suas origens na Londrina dos anos 1970.

No Fim da Infância pode ser lido, ainda, como uma versão renovada, porque afetiva, da história cultural de Londrina. São memórias narradas por um personagem de sensibilidade singular, e que viria a se tornar um dos artistas mais radicais da cidade. Mais do que esclarecer detalhes sobre os primeiros passos de Arrigo na música e os bastidores de suas composições atonais, a obra também dá a conhecer um pouco de sua vida emocional, suas angústias, alegrias, transgressões e oscilações na busca por fazer de si próprio um artista de vanguarda. O livro é, dessa forma, um comovente autorretrato sobre o fim da infância, o início da adolescência e da vida adulta.

A publicação é uma realização da Grafatório Edições, uma editora independente de Londrina ligada ao coletivo do mesmo nome. Uma característica marcante da editora londrinense é o cuidado gráfico com que os livros são produzidos, e com No Fim da Infância não foi diferente. O texto foi todo composto em tipografia, uma técnica artesanal de impressão. No Fim da Infância inclui ainda fotografias inéditas, redescobertas em acervos particulares e impressas em papéis especiais. 

A publicação contou com edição de Felipe Melhado, que também assina o posfácio, projeto gráfico de Maikon Nery e Pablo Blanco, composição tipográfica de Silvio Valduga, impressão offset por Maurício Alves, letras capitulares desenhadas pelo calígrafo Diogo Blanco, e assistência de produção de Gabriela Campaner e Manoel Nascimento. 

Esse é o quinto livro publicado pela Grafatório Edições, que também já editou nomes como Paulo Leminski, Rogério Sganzerla e Paulo Menten. No lançamento, a obra será vendida a R$65. A tiragem é limitada a 500 cópias.

A publicação de No Fim da Infância conta com o patrocínio do PROMIC - Programa Municipal de Incentivo à Cultura, e apoio da Moinho Brasil.

O show

No dia seguinte ao lançamento do livro, na sexta-feira (28), o projeto Circulasons promove um show de Arrigo Barnabé às 20h30 no Teatro Ouro Verde (rua Maranhão, 85). O músico sobe ao palco para apresentar o seu espetáculo mais recente: Quero que vá tudo pro inferno. Ao lado de Sérgio Espíndola (violão) e Paulo Braga (piano), ele interpreta canções de Roberto e Erasmo Carlos que marcaram sua juventude, e que revelam o impacto que a jovem guarda teve em seu comportamento e senso estético quando ele ainda vivia em Londrina. As canções, é claro, ganharam novos arranjos e são marcadas pela interpretação visceral de Arrigo.

As entradas já estão à venda on-line, pelo site Sympla. Para garantir seu ingresso, acesse: https://bit.ly/2XyRyKD

O show Quero que vá tudo pro inferno é uma realização do projeto Circulasons, organizado pela TOCA - Arte Ação Criação, e com patrocínio da Cacique - Companhia de Café Solúvel, Uniprime, Cosan e Midiograf.

Confira entrevista com Arrigo Barnabé

Como era a Londrina onde o jovem Arrigo Barnabé conheceu a Jovem Guarda?

Eu morava ali na R. Paranaguá, quase esquina com a R. Sergipe. Era tudo casa, não tinha prédio. Era um lugar muito tranquilo. Eu tive uma infância privilegiada, brincava na rua. A gente ficava na rua até à noite. Não tinha televisão, a televisão chegou mais ou menos na época da Jovem Guarda, em 1964, por aí. A gente escutava mais o rádio. E tinha o cinema, o Ouro Verde, o Augustus, o Cine Joia, Cine Londrina e Cine Brasília. O Vila Rica ainda não existia. Eu estudava música no Conservatório do Colégio Filadélfia. Nesse período, tinha alguns amigos. O Valter Luís Guimarães fazia inglês comigo. Tinha o José Carlos Souza Neves, o Zé Bita, que depois virou travesti. Enfim, tinha uma turma de adolescentes, mas todo mundo low-profile, bem tranquilo, ia à missa aos domingos, essas coisas. Quando o Roberto Carlos apareceu, a gente ainda não prestava muito a atenção. Escutava as músicas na rádio, mas não prestava muito a atenção. Eu estudava piano, então tinha um pouco de noção. Eu lembro que umas primas vieram passar as férias de julho em Londrina e Roberto Carlos veio fazer o show no Colossinho. O Colossinho era um ginásio de esportes que tinha junto com o Colégio Filadélfia. A gente comprou os ingressos e foi para o Colossinho. E o Roberto não chegava… O avião atrasou, deu algum problema. Finalmente ele chegou, duas horas depois, sei lá. A gente não escutava direito, era até um pouco frustrante. No ano seguinte, quando saiu o LP Jovem Guarda, quando saiu Quero que vá tudo pro inferno, era uma coisa incrível. Meu pai tinha um cartório ali no Fórum, ele era escrivão da 2ª Vara Cível. Eu trabalhei para ele nas férias e, com o meu salário, dava para comprar um LP. Fui numa loja do Centro Comercial. E fiquei entre o Jovem Guarda e o Dois na Bossa nº1, com a Elis Regina e o Jair Rodrigues. Eu estava começando a perceber que existiam programas estéticos na música. A MPB de Elis e Jair era um programa estético. A Jovem Guarda era outro programa estético. Mas eu fiquei escutando os dois e não tinha jeito, comprei o Jovem Guarda, porque era irresistível. E eu escutei bastante. É engraçado, dentro deste LP eu percebi que existiam algumas coisas que saíam do programa estético da Jovem Guarda. Eu já percebia que Gosto do jeitinho dela, que é uma das faixas, era uma coisa diferente, era cantada baixinho. Eu percebia que, na Jovem Guarda, a pessoa não precisava cantar com tanta voz. Porque tinha a influência do João Gilberto, que era influenciador do Roberto Carlos. A gente dançava essas músicas. Eu me lembro do dia em que o Erasmo Carlos lançou Gatinha Manhosa, eu escutei pela primeira vez no rádio, em casa, tinha um quartinho nos fundos onde a gente estudava. Eu me lembro de escutar e depois dançar Gatinha Manhosa. Quando eu estreei o show aqui em São Paulo, há dois anos, foi difícil fazer, porque eu me emocionava.

Existiam algumas bandas de Jovem Guarda na cidade, você se lembra?

Tinha, a gente assistia um programa da Regina Delalibera que se chamava Ala Jovem. Ela fazia uma espécie de Wanderléa. E eu lembro que existiam algumas bandas… Os Cinco Falcões, com duas meninas tocando... Depois teve o Oswaldo Diniz e a Maria Lúcia Diniz, que montaram alguns programas na televisão, também. Era uma coisa diferente, a Maria Lúcia dava aula de música. E tinha o irmão deles [Edson Diniz]. Eles eram em três. Uma família que agitava bastante aí. Foi um período curto, mas na minha lembrança é enorme. Foram três ou quatro anos no máximo.

Você falou da questão estética entre a Jovem Guarda e a MPB quando ficou entre os dois discos… Se você tivesse escolhido o disco da Elis e do Jair, você acha que teria outro tipo de influência?

Não, porque eu ouvia em outros lugares. Não era uma troca. Eu gostava dos dois. Eu adorava Elis cantando Arrastão. Isso deve ter sido em 1966, eu acho, quando teve o festival com Arrastão. Eu adorava aquilo. Gostava muito. Mas o Quero que vá tudo pro inferno era irresistível. Tinha coisas estranhas no disco, ele cantava um fado, Coimbra. Não tinha unidade. Tinha o Gosto do jeitinho dela, que é uma coisa da Bossa Nova. Havia coisas estranhas ali no meio.

São canções fortes, uma ligação direta com o sentimento... Você sente isso?

Olha, eles fazem uma coisa muito popular. Eu falo eles, porque é o Roberto e o Erasmo. Não tem uma preocupação que não seja afetiva. Comentam as relações afetivas tentando ser contemporâneos. Existia um comentário sobre relacionamento afetivo anterior, mas que já era de uma outra geração, de uma outra sociedade. A sociedade estava mudando, os costumes estavam mudando, e eles estavam percebendo isso. Estavam atentos à afetividade do momento, em como as pessoas estavam se relacionando. A preocupação sempre era o relacionamento amoroso, 95% das canções falam disso.

Como foi colocar o Arrigo dentro dessas músicas que todo mundo conhece, todo mundo canta?

É difícil, porque todo mundo conhece bem. Em 1985, depois de ter feito Tubarões Voadores, eu tinha que fazer um segundo LP pela [gravadora] Ariola. E eu queria fazer um LP de intérprete, não iria compor. Iria gravar, entre outras coisas, Quero que vá tudo pro inferno. E o Itamar [Assumpção] fez um arranjo, um baixo para Quero que vá tudo pro inferno e me mostrou. Eu iria gravar também Chove Chuva, do Jorge Ben, e Lábios que beijei, de J. Cascata e Leonel Azevedo... Mas eu comecei a filmar o Cidade Oculta, e o filme tinha um orçamento muito baixo, eu estava atuando como o protagonista do filme. E eu coloquei o meu segundo disco para a Ariola como sendo a trilha do filme. Não havia dinheiro, a produção era precária. Todo mundo entrou com uma parte do salário para dedução, e recebeu bem menos do que iria receber. E a Ariola pagou a parte musical. A coisa do Roberto Carlos ficou. Mas eu sempre pensei nisso, sempre achei muito interessante esse universo. No começo dos anos 2000, eu escutava e pensava: “Pô, mas isso é que é música popular”. Todo mundo entende, não tem código escondido, não tem nada. É um negócio claro. Eu sempre cantei essas coisas de brincadeira, em reunião com amigos, sempre fiz isso. Vi que as pessoas gostavam, achavam legal. Sempre toquei Vem quente que eu estou fervendo em casa, no piano, com minha característica mais marcante, que é essa voz gritada.

E essa voz gritada veio junto com Clara Crocodilo?

É, isso tem a ver com locutores de rádio, com programas de crime. E a gente escutava o rock, Janis Joplin, Joe Cocker… Disfarça a minha desafinação.

Você já tentou fazer uma música que tentasse essa comunicação direta da Jovem Guarda?

Suspeito é uma música que tem a ver com o estilo do Roberto e do Erasmo, com certeza.

O fato de essas canções serem muito populares gera algum tipo de preconceito?

Tem preconceito para tudo, né? Na época, o pessoal de esquerda achava que o pessoal da Jovem Guarda era alienado, tinha uma coisa assim. Mas eu estou falando de um momento. Eu acompanho mais o Erasmo. As coisas que o Roberto Carlos tem feito, os últimos discos dele, eu não escuto. Estou falando de um período que vai até 1980.

Você vai lançar o livro No fim da infância no dia 27… É cheio de memórias, não é?

É um livro basicamente de memórias. Acho que tem duas crônicas que são ficção. Esse material é todo publicado. São textos relacionados com a cidade [Londrina]. Eu falo sobre quando o Psicose, do Hitchcock, estreou em Londrina. Os pais foram assistir, e eu e meus primos ficamos na casa de uma tia. E eu lembro das impressões dos pais quando voltaram, comentando sobre o filme. É uma coisa ligada com a cidade. Tem uma outra crônica em que eu falo quando o meu primo começa a tocar acordeom, o Felipe, e a casa do meu avô ficava atrás da Catedral. Falo de lugares da cidade.

É uma memória bastante sentimental, não é? Como é voltar para Londrina e tocar aqui?

Faz muito tempo que eu não toco em Londrina. A última vez foi em 2010, no Valentino [Arrigo Barnabé deu uma aula show no Londrix – Festival Literário de Londrina – em 2012]. Depois disso não toquei mais, agora que me convidaram. O normal seria fazer um show aí a cada quatro anos. Eu tive em Londrina em janeiro ou fevereiro, passei uma semana filmando com o [cineasta] Rodrigo Grota. As memórias, quando elas batem com a realidade, com a transformação que a cidade sofreu, não resistem. É tudo completamente diferente. Tem, ainda, o Rodeio, aquele restaurante no centro… A Igreja da Imaculada Conceição… Até a própria Catedral mudou, era muito mais bonita.

Você está compondo? Como estão seus projetos?

Eu estou escrevendo uma missa para o Coro da Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo] que vai estrear em novembro, tenho que entregar neste mês, estou na correria… Já escrevi o Gloria e o Kyrie, agora tenho que escrever o Credo, Sanctus e Agnus Dei. Estreia no dia 2 de novembro, na Sala São Paulo.

Você tem muita coisa para ser gravada?

Eu tenho. Tenho um programa que escrevi para um grupo de percussão português, da Cidade do Porto, que se chama Drumming. Eu escrevi 1 hora para eles de música. A primeira parte chama-se Caixa da Música, é uma suíte com cinco peças; e depois tem Out of Cage, também uma suíte com oito peças. Isso é inédito, não está gravado. Tem coisas para piano, algumas eu escrevi inclusive para o Rodrigo [Grota], para um filme dele, que não estão gravadas. Tenho coisa para piano e percussão, para orquestra, quarteto de cordas. Depois eu fiz também as óperas. E vai sair meu filme: Amigo Arrigo [de Alain Fresnot e Júnior Carone], é um longa-metragem sobre o meu trabalho.

O que está te surpreendendo hoje na música?

A gente tem um salto de qualidade de intérprete, tanto na área erudita quanto popular, com cantores muito bons. De 2000 para cá, foi uma coisa brutal, em termos de qualidade dos instrumentistas e dos cantores. Um negócio impressionante. Em Londrina tem vários grupos que eu escutei, é um pessoal muito bom. As pessoas têm mais acesso às escolas de música… Você tem a própria Sala São Paulo, a Osesp, enfim, várias iniciativas, como os pontos de cultura, ligadas a leis de incentivo… As coisas vão ficando acessíveis. As universidades começaram a ter cursos de música, antes não existiam. Era um aqui e um em Salvador… E tem a internet. A gente não sente esse salto de qualidade na parte da composição. Os jovens compositores são bons, interessantes, competentes, nenhuma crítica à qualidade do que eles fazem, mas nessa área criativa o salto de qualidade não foi igual ao salto que ocorreu na área dos intérpretes.

Ranulfo Pedreiro/Asimp

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