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Ao longo de 2020, o Ministério Público do Paraná ajuizou 484 ações civis públicas na área do Patrimônio Público em todo o estado. Trata-se de medidas judiciais requeridas pelas Promotorias de Justiça com atribuição na área contra pessoas – muitas vezes gestores públicos – que cometeram algum ilícito contra o patrimônio público, conforme apurado a partir de investigações. Na grande maioria desses processos, o embasamento legal para as investigações decorre da Lei 8.429/1992, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa. Em vigor há quase 30 anos, a norma está atualmente em discussão no Congresso Nacional, onde são debatidas modificações significativas que, no entendimento do Ministério Público brasileiro e de muitos integrantes do sistema de justiça, poderão causar impactos negativos no combate à corrupção.

Uma das principais mudanças pretendidas com a revisão da legislação, conforme o Projeto de Lei 10.887/2018, trata da necessidade de comprovação de dolo específico do gestor público no cometimento do ato. Ou seja, somente poderá ser tipificado o ato de improbidade administrativa nos casos em que ficar comprovada a intenção do servidor ou do gestor público em cometer a ilegalidade com o propósito de causar dano ao patrimônio público, para favorecer a si ou a terceiros. “Atos de negligência, imprudência ou imperícia, por exemplo, que podem causar danos e prejuízos ao patrimônio público, mesmo que não decorram de uma vontade direta de provocá-los, não mais poderão ser tipificados como atos de improbidade caso o projeto seja aprovado”, explica o promotor de Justiça André Tiago Pasternak Glitz, presidente da Associação Paranaense do Ministério Público (APMP), entidade que acompanha a tramitação do PL.

Resultados

A evidência de que a aplicação da Lei de Improbidade atualmente em vigor alcança o objetivo de coibir ilegalidades na administração pública pode ser comprovada em números. Balanço do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção ao Patrimônio Público e à Ordem Tributária, órgão do MPPR, mostra que, em 2020, o Ministério Público do Paraná, só por meio dos núcleos do Grupo Especializado na Proteção do Patrimônio Público e no Combate à Improbidade Administrativa (Gepatria), instaurou 91 inquéritos civis e encerrou outros 124 que estavam em andamento.

“Impressionam-me os esforços atuais para alterar a Lei 8.429/1992. É explícita a intenção de se inviabilizar a aplicação das normas anticorrupção e dificultar a aplicação das sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa. O trabalho do Ministério Público no combate aos desvios cometidos por agentes públicos e políticos talvez seja uma das principais frentes de atuação da instituição. Temos a convicção de que, caso algumas das alterações em discussão sejam de fato implementadas, promotores e promotoras de todo o país terão bastante limitadas suas possibilidades de enfrentamento da corrupção, da má gestão e do desperdício do dinheiro público”, avalia o procurador de Justiça Maurício Kalache, que coordena o citado Centro de Apoio.

O promotor de Justiça Leonardo Dumke Busatto, que também atua no Centro de Apoio, aponta que, no âmbito extrajudicial, os esforços dessas unidades do MPPR para a resolução das demandas e adoção de boas práticas na gestão pública resultaram na expedição de 310 recomendações administrativas e na celebração de 63 termos de ajustamento de conduta, sendo que, por meio destes últimos, ficou acordado o pagamento total de R$ 2.479.827,19 para reparação de danos causados ao erário em casos de improbidade. Além disso, foram propostas pelos núcleos do Gepatria 56 ações judiciais no âmbito cível, por meio das quais foi requerida a restituição de R$ 650.617.613,45 aos cofres públicos. Desse valor, foi tornada indisponível do patrimônio das partes demandadas a quantia de R$ 106.132.899,06. “Os dados objetivos demonstram a eficiência da legislação em subsidiar o trabalho do Ministério Público na repressão aos ilícitos”, avalia o promotor.

O Gepatria - atualmente disposto em 12 núcleos que abrangem todo o estado – atua de maneira preventiva e repressiva, sobretudo nos casos de maior repercussão, gravidade e complexidade, que gerem enriquecimento ilícito, causem danos ao patrimônio público ou atentem contra os princípios da administração pública. Foram conduzidas pelo Grupo Especializado, por exemplo, as operações Riquixá e Quadro Negro.

Reflexos na atuação

O subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Jurídicos do MPPR, Mauro Sérgio Rocha, menciona o que considera serem os possíveis impactos diretos no trabalho do Ministério Público em caso de mudança na legislação: “As alterações na Lei de Improbidade, se eventualmente superado o processo legislativo em curso, trará significativos reflexos na atuação ministerial. Elas não apenas interferem na investigação, como transcendem para aspectos materiais e processuais. Pode-se afirmar que essas mudanças sacrificariam ainda mais a reivindicada efetividade na proteção e defesa da coisa pública”. Rocha cita algumas aplicações práticas do poderia ocorrer: “Por exemplo, desconsidera-se a necessidade e a pertinência da realização da prova, tornando assim absoluto um direito fundamental. A lei passará a considerar nula a sentença proferida sem a produção da prova requerida (no prazo) pela defesa, ou seja, condicionando a sua produção exclusivamente à tempestividade do requerimento, sob pena de nulidade. Além disso, a previsão, sem ressalvas, de condenação em verba honorária em caso de improcedência também é fator dos mais preocupantes, na medida em que ignora a sistemática estabelecida pelo microssistema processual coletivo (ou seja, o Estado ou o próprio Ministério Público ficará responsável pelas despesas dos advogados da parte ré, caso não caracterizado ou não comprovado o ato de improbidade). Enfim, muitos são os pontos a desafiar o estudo e a criatividade ministerial caso seja mantido o texto nos termos aprovados pela Câmara dos Deputados”.

Atentado à moralidade

Outras frentes de atuação ministerial que poderão sofrer restrições caso ocorram as mudanças na Lei de Improbidade são apontadas pelos membros do MPPR. O promotor de Justiça Fernando da Silva Mattos, coordenador de Assuntos Institucionais do MPPR e diretor de Defesa das Prerrogativas da APMP, exemplifica: “No atual contexto da pandemia, por exemplo, a conduta de um gestor público que se beneficia do cargo para ‘furar a fila’ da vacinação contra a Covid-19 – apesar de ser um ato que não gera necessariamente enriquecimento ilícito para quem o cometeu – representa uma violação direta à moralidade administrativa e, por isso, necessita ser devidamente investigada e sancionada, o que não seria possível se estivessem em vigor as alterações propostas no Congresso”.

Na avaliação do promotor de Justiça André Glitz, essa impossibilidade de se caracterizar como ato de improbidade condutas que violem princípios constitucionais da administração, mas que não necessariamente geram danos ou prejuízos diretos ao erário ou enriquecimento ilícito àqueles que as cometem, representará um prejuízo para a garantia de lisura na gestão do patrimônio público. “Casos de contratações ou indicações de familiares por gestores para a ocupação de cargos públicos, que atentam claramente contra o princípio da impessoalidade, não mais serão alvo de ações de improbidade administrativa. Assim como fraudes em concursos públicos. São situações que não seriam mais passíveis de punição por ato de improbidade”, explica.

O presidente da APMP afirma que uma das alegações daqueles que defendem as mudanças na lei seria a necessidade de coibir eventuais abusos cometidos por promotores de Justiça. “Essa justificativa não procede, uma vez que são exceções as ocorrências em que as ações ajuizadas pelo Ministério Público não encontram respaldo na Justiça”, sustenta Glitz. Ele cita dados do Conselho Nacional de Justiça indicando que nos últimos anos o Ministério Público obteve resultados favoráveis em mais de 19 mil processos judiciais já finalizados envolvendo ações de improbidade administrativa. “São casos em que o Ministério Público apurou, investigou e ajuizou a ação civil, e o Poder Judiciário reconheceu e condenou pessoas, em grande parte gestores públicos, por ilícitos contra a administração. Ou seja, não podemos tomar exceções como regras para afrouxar a legislação”, pondera.

Inversão de valores

No entendimento do procurador de Justiça Mateus Bertoncini, membro da Procuradoria de Justiça que representa o MPPR nas ações de improbidade administrativa junto ao Tribunal de Justiça, “a defesa da probidade administrativa prevista na Constituição de 1988 não é o objetivo do Projeto de Lei 10.887/2018, e as pretendidas alterações induzem a essa conclusão. A comprovação do dolo específico para a configuração de qualquer modalidade de ato de improbidade administrativa, por exemplo, corresponde à chamada ‘prova diabólica’, impossível de ser realizada, pois não há meio que permita a demonstração da intenção do réu no momento em que ele comete o ilícito”. Outro exemplo citado pelo procurador de Justiça são os atos de improbidade administrativa praticados por partidos políticos e seus dirigentes, que, de acordo com a proposta em curso, não mais seriam puníveis. “Conforme previsão do art. 23-C do PL, os partidos políticos responderão exclusivamente com base na Lei 9.096/1995, a chamada Lei dos Partidos Políticos, que somente prevê a devolução dos recursos desviados do Fundo Partidário pela agremiação política, acrescida de multa de até 20% (art. 37)”, explica. Segundo essa Lei, especificamente a partir do que diz o § 2º do art. 37, são isentos de responsabilidade os dirigentes envolvidos.

Outra inovação do Projeto de Lei destacada pelo procurador de Justiça é o novo regime de prescrição dos atos de improbidade administrativa. “O prazo geral de oito anos contado a partir da data do ilícito desconsidera a reeleição. Além disso, há a criação de um modelo de prescrição intercorrente, com a previsão de prazo pela metade entre os marcos inicial e final, ignorando a complexidade das ações de improbidade administrativa e o grande volume de trabalho dos tribunais brasileiros”, explica. “Esse modelo, provavelmente, estimulará a prática de ‘chicanas jurídicas’. A imposição de um curto prazo de investigação e de numerosos deveres processuais ao Ministério Público, inclusive a sucumbência – com a imposição de pagamento de honorários advocatícios no caso de improcedência das ações – também é novidade. Com isso, a persecução e a punição dos atos de corrupção na esfera administrativa ficarão mais difíceis”, avalia. O procurador de Justiça, que atua nos processos na fase recursal, no 2º grau, pondera que o projeto em trâmite prestigia o interesse privado em detrimento do interesse público. “Com esses poucos exemplos – e haveria outros –, parece se confirmar a desconfiança de que o foco do PL 10.887/2018 é a proteção – quase uma blindagem – das pessoas envolvidas com a prática de atos de improbidade administrativa. Se aprovado, o PL 10.887/2018 criará as condições para se promover a impunidade e estimular a corrupção, revogando, no plano pragmático, a Lei de Improbidade Administrativa e dificultando o controle pelo Poder Judiciário da probidade na Administração Pública. A pergunta que fica é a seguinte: a quem interessa o PL 10.887/2018?”, questiona.

Ineficiência da Lei

O procurador de Justiça Mário Sérgio de Albuquerque Schirmer, que atua no 6º Grupo Cível da Procuradoria de Justiça do MPPR, enfatiza os graves prejuízos que o texto em discussão pode acarretar. “A conclusão sobre o Projeto de Lei é simples: torna a Lei de Improbidade ineficaz. Se aprovado, não haverá como utilizá-la, não existirão ações com pedidos de condenação pela prática de atos ímprobos, tampouco haverá recuperação de valores desviados do erário”. O procurador de Justiça também destaca as mudanças de prazos previstas no texto em trâmite: “Os casos de improbidade costumam ser complexos, normalmente com pluralidade de fatos e de agentes. Por isso, as investigações e as ações judiciais, em geral, são demoradas, pois há necessidade de ouvir muitas pessoas, reunir e examinar diversos documentos, realizar perícias, auditorias etc., além da análise de inúmeras alegações e dos tramites processuais. Com isso, a grande maioria dos inquéritos civis não poderá ser finalizada no prazo máximo de 360 dias estabelecido no projeto, o que resultará no arquivamento de inúmeras investigações sem conclusão”.

Na avaliação de Mário Schirmer, mesmo nos casos em que o Ministério Público chegar a propor a ação civil, muitos terminarão em prescrição. “Quem tem alguma experiência na área sabe que nas ações desse tipo é muito raro se atingir a fase de sentença em menos de quatro anos, prazo prescricional previsto pelo projeto após a primeira interrupção, que é a propositura da ação. Ainda mais sendo impossível, sob pena de nulidade, indeferir qualquer prova tempestivamente especificada pelos réus. Fica muito fácil retardar o processo e levar a pretensão do autor para a prescrição. Na remota hipótese de conseguir chegar à fase de sentença no prazo, a condenação será quase impossível”, explica. E o membro da Procuradoria do Ministério Público elenca alguns motivos para tal afirmação: “A necessidade da prova de dolo específico e da intenção de obter benefício próprio ou alheio para configurar ato ímprobo; o grande número de salvaguardas trazidas pelo projeto, não permitindo que diversos ilícitos sejam caracterizados como atos ímprobos; a série de ônus impostos ao autor, entre outros. Na improvável possibilidade de uma sentença condenatória, o resultado ficará muito aquém do necessário, pois o projeto reduz as sanções e veda o dano indireto (reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça)”.

Outros exemplos de casos de improbidade são mencionados por Mário Schirmer: “Para se ter uma ideia, uma grande fraude em licitação (com falsificações, participação de empresas fantasmas etc.), sem a prova de lesão financeira ‘efetiva’ não ensejará sequer suspensão dos direitos políticos, as penas ficarão restritas a multa de até 24 vezes o valor da remuneração do agente público e, pelo prazo máximo de quatro anos, proibição de contratar com o Poder Público e de receber benefícios estatais. Essas reprimendas praticamente não afetam agentes políticos. Como a maior probabilidade é a improcedência dos pedidos ou a extinção do feito, o projeto, contrariando a diretriz das ações coletivas, prevê que o autor será condenado a pagar os honorários dos advogados dos réus (que costumam ser vários)”. Com as mudanças, portanto, pondera o procurador, “o custo-benefício de propor a ação ficará muito desfavorável, pois o esforço será enorme, a possibilidade de condenação será quase nula, e o risco de pagar o ônus da sucumbência, imenso. Então, uma ação que se destina à proteção do patrimônio público provavelmente importará em prejuízo ao erário. O princípio da eficiência, previsto no artigo 37 da Constituição Federal, não recomendará a propositura da demanda. Assim, para proteção do patrimônio público e punição dos ímprobos, será necessário procurar outros caminhos. A ação penal, por exemplo, será muito mais eficiente e segura”. Diante de tantos impactos negativos, portanto, conclui Mário Schirmer que “a aprovação do projeto significará o fim da Lei de Improbidade, um triste epílogo para um instrumento tão importante na proteção do patrimônio público”.

Participação popular

As discussões sobre modificações na Lei de Improbidade Administrativa tiveram início em 2018, a partir de um grupo de trabalho criado na Câmara dos Deputados, sob a presidência do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Mauro Campbell Marques. As propostas que atualmente têm gerado divergências e que, na avaliação de boa parte dos integrantes do sistema de Justiça, enfraquecem o trabalho do Ministério Público derivam de um substitutivo apresentado pelo relator da matéria (o deputado federal Carlos Zarattini), recentemente aprovado na Câmara dos Deputados em regime de urgência. “Para uma lei que está em vigência há quase 30 anos, é natural que existam atualizações necessárias, mas o que não pode acontecer é, no lugar de melhorias, haver flagrantes retrocessos no combate aos ilícitos contra a administração pública”, destaca André Glitz. O promotor de Justiça Fernando da Silva Mattos salienta que “a Lei de Improbidade Administrativa é um dos mais importantes instrumentos de defesa da cidadania e, por isso, qualquer pretensão de alteração do seu conteúdo deve contar com ampla participação da população”.

Discussão interna

Considerando a relevância do tema para a atuação do Ministério Público, a Procuradoria-Geral de Justiça instituiu nesta quinta-feira, 29 de julho, comitê específico formado por promotores e procuradores de Justiça. O objetivo do grupo será acompanhar os debates no Congresso Nacional acerca da tramitação do PL 10.887/2018, bem como propor estratégias de atuação institucional frente aos possíveis impactos da matéria na atuação institucional.

Saiba mais

Confira aqui entrevista do programa MP no Rádio em que os promotores de Justiça Fernando da Silva Mattos, coordenador de Assuntos Institucionais do MPPR e diretor de Defesa das Prerrogativas da APMP, e André Tiago Pasternak Glitz, presidente da Associação Paranaense do Ministério Público, comentam o assunto.

Asimp/MPPR

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